É difícil para mim revisitar as páginas de um livro que me marcou profundamente. E volta e meia sinto saudade de algumas dores e devaneios e me transporto para terrenos já percorridos, mas em raros casos, eles me permitem sensações novas...
Só garotos é uma dessas obras. Conta a trajetória de vida de Patti Smith, como criança, adolescente, artista, mulher apaixonada pela poesia e por ídolos de carne e osso, que em meio a tantas adversidades conseguiu brilhar no mundo artístico. Mas - ouso afirmar - ela não conseguiu isso sozinha... E em sua autobiografia, publicada pela Editora Companhia das Letras, ela nos conta sobre uma pessoa especial, uma 'estrelinha azul', da qual só lhe restou "um cacho de seu cabelo, um punhado de suas cinzas, uma caixa com suas cartas, um pandeiro de pele de cabra. E nas dobras do desbotado lenço roxo um colar, com duas placas roxas escritas em árabe, enfileirando suas conta prateadas e pretas que me deu o menino que amava Michelangelo."
Nos primeiros anos de sua infância em Chicago, Patti já almejava algo maior em sua vida. Não se contentaria com um emprego de fábrica e sua paixão por livros e o ímpeto de se rebelar contra as convenções religiosas e sociais fizeram com que ela saísse de sua cidade rumo à Nova York. Sozinha, apenas com uma passagem de ida na mão e poucos pertences, ela queria ganhar dinheiro com sua arte, seus poemas e desenhos. Mas lá chegando, as dificuldades a recepcionaram...
Quando consegue um emprego de caixa numa lojinha, depois de ter passado fome e dormido ao relento, surge numa situação inusitada aquele que viria a ser seu salvador, um garoto de cabelos cacheados, pele clara e olhos verdes e sonhadores; esse garoto era Robert Mapplethorpe.
Uma lealdade mútua nasceu entre ambos e ao longo de vários anos eles dividiram quartos, apartamentos, colchões velhos e moedinhas para o metrô... Viviam se presenteando com coisas simples, reaproveitadas do lixo, compradas em brechós e lojinhas de penhores e souvenires. Escreviam, pintavam, desenhavam, fotografavam... Conheceram artistas underground nas calçadas e clubes novaiorquinos, tais como Andy Warhol, Candy Darling, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Carrol. Viram amigos se picarem, se suicidarem, irem embora para não mais voltar...
Um incentivava o trabalho do outro, e mesmo nos momentos de aperto, em que o que ganhavam mal dava para o aluguel, eles nunca perderam a esperança em dias melhores, nem a cumplicidade que os unia, como se fossem um só...
Moraram por um tempo no Hotel Chelsea, ponto de encontro de várias personalidades do meio artístico dos anos 60 e 70. Nesse período, Robert já dava indícios de sua homossexualidade. E novos caminhos foram surgindo entre os dois, novos personagens vieram para mudar o rumo da relação, e embora eles tenham se afastado fisicamente, o amor foi mantido...
"Os dois haviam se entregado a outras pessoas. Hesitamos e perdemos todo mundo, mas encontramos um ao outro novamente. Queríamos, ao que parecia, o que já tínhamos antes, um amante amigo para criar junto, lado a lado. Ser leal, mas livre..."
Foi na época em que tomaram rumos diferentes que Patti montou sua banda, e a capa de seu primeiro CD foi tirada por Robert. O disco é considerado um dos cem melhores álbuns da indústria musical, e um precursor do movimento punk. Segundo Patti, "Até hoje quando olho para essa foto, nunca me vejo. Vejo nós dois."
Já debilitado por causa da AIDS, Robert se despede da vida, enquanto Patti teve que permanecer com a lembrança de sua morte [Isso não é spoiler, tem na própria contra-capa do livro]. O livro é um verdadeiro mergulho nas memórias de Patti Smith, contando sobre seu envolvimento com Mapplethorpe, numa trajetória cheia de lirismo e poesia pungente... E pela segunda vez, findar este livro me fez chorar. Virei a última página com aquela velha e conhecida secura no peito e o 'engolir em seco' na garganta...
"Patti, será que a arte nos entendeu?" [...] "Patti", disse ele, "estou morrendo. É muito doloroso."
Meu amor por ele não podia salvá-lo. Seu amor pela vida não podia salvá-lo. Foi a primeira vez que entendi de verdade que ele ia morrer. Vinha sofrendo um tormento físico que nenhum homem deveria sofrer. [...] Robert morrendo: criando silêncio. Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida inteira para expressar."
O livro possui algumas fotografias do acervo do casal. Tocar estas páginas e mirar por algum tempo estas fotografias sempre me é dolorido... Me sinto até como parte de Robert e Patti. Devo ser a filha deles em alguma antiga vida passada, quem sabe... E seria grata à algum milagre da vida se pudesse encontrá-los um dia, em alguma esquina de uma melancólica Nova York... talvez um dia, quando for possível uma viagem no tempo...
"Pensei em dar uma olhada nas suas coisas e no seu trabalho e, passando por anos de trabalho na minha cabeça, vi que, de todos os seus trabalhos, você é ainda o mais bonito. O trabalho mais lindo de todos.
Patti."