quinta-feira, novembro 29, 2018

a poética de Sheyla Smanioto em Desesterro




Sheyla Smanioto entrega ao leitor uma obra pungente, com uma narrativa poderosa, que faz da temática que já beira o lugar-comum - apesar de sua importância em se discutir - um conjunto inusitado de poesia, lirismo e crítica/denúncia social. Desesterro é o grito de Fátimas, Penhas e Marias, sobre a violência sofrida de tantos Tonhos que perpassam o caminho de nós - mulheres - em algum determinado ponto de nossas vidas [infelizmente].

Vai dizer que você não tinha percebido o que vinha?

Sheyla deu voz às mulheres espancadas, entregues à fome e à miséria. A obra foi vencedora do prêmio SESC de literatura em 2015. Possui passagens metafóricas, com imagens fortes entremeadas a frases profundas e de estética apurada. Somos [des]orientados pelos caminhos de sua prosa poética, descortinando horrores, dores, sonho e realidade, um verdadeiro arquétipo sobre uma pátria que confina, esmaga e naturaliza as 'mortes no parto' de tantas mulheres pertencentes à Terra. 

Um relato sincero, comovente, animalesco e cru. Desesterro desfaz o leitor em barro/terra, molda nossos questionamentos enquanto nos estapeia a alma.

terça-feira, novembro 27, 2018

[Quotes] Caio f.

Os olhos, ela viu. Os olhos tinham mudado. Estavam parados, com uma coisa no fundo que parecia paz. Ou desencanto.
Caio f.

quinta-feira, novembro 15, 2018

O novo epicuro: as delícias do sexo

Certamente, O novo Epicuro: as delícias do sexo é uma leitura que põe o leitor numa posição de desconforto, devido ao teor sexual envolvendo pedofilia, narrado em primeira pessoa pelo protagonista do livro, Sir Charles, um nobre que relata através de cartas para suas amantes,  algumas de suas aventuras sexuais, com meninas em idades entre nove e quinze anos.

O livro foi escrito em 1865 e causou grande escândalo na época, por conta do seu teor altamente perturbador. Chegou a ser confiscado em sua primeira edição. Possui descrições detalhadas numa linguagem fluída e impactante.

Edward Sellon teve uma vida breve, porém repleta de aventuras. Assim como em sua obra, nunca se prendeu a convenções sociais. Tanto o autor quanto o seu personagem possuíam como característica o fato de não resistirem a 'diversões', mesmo que estas chocassem a sociedade. Possivelmente, em muito de sua obra estejam relatadas suas próprias experiências, vestidas sob a capa do ficcional.



Um ano após a publicação de O novo Epicuro, Sellon deu um tiro na própria cabeça, aos 48 anos de idade, certamente pelo comportamento ultrajante que o levou a um estado de ostracismo imposto pela sociedade rígida inglesa.

A obra faz parte da Coleção Clássicos da Literatura Erótica da Editora Hedra. O novo Epicuro contém cenas eróticas consideradas tabus. Leitura para uns poucos, e mesmo estes poucos irão se chocar com seu conteúdo...


segunda-feira, novembro 12, 2018

Poesia Galega - das origens à Guerra Civil

Publicado pela Editora Hedra numa singela edição de bolso, Poesia Galega - das origens à Guerra Civil foi traduzida e organizada por Fábio Aristimundo Vargas e compila grandiosos textos da literatura galega, dividida por alguns principais períodos históricos, com poemas que vão das cantigas galego-portuguesas até o período da Guerra civil Espanhola, que durou até 1939.



Os ciclos literários se encontram bem divididos e representados, como o período Medieval, Séculos Escuros, Pré-ressurgimento, Ressurgimento, Intersecular e literatura de Pré-guerra do século XX. É possível para o leitor encontrar nomes como Rosália de Castro, Eduardo Pondal, Amador Montenegro e Federico García Lorca, este último bastante popular e mais conhecido do público não muito familiarizado com a poesia galega/espanhola. 

Durante o período medieval houve um movimento poético em toda a Península Ibérica, tendo o Trovadorismo, a lírica sacra e profana e Cantigas de Santa Maria como principais elementos de sua composição. 

Nos Séculos Escuros praticamente não houve produção literária galega, mas num contexto histórico, os séculos XVI a XVII compreendem substituições da nobreza local por uma castelhana, por motivos políticos. Porém, temos Cura de Fruíme e Xosé Cornide representando a época com suas obras. A partir daí, no Pré-ressurgimento, houve uma recuperação da importância da língua galega, representada principalmente pela obra de Francisco Añon.

Já no século XIX [Ressurgimento] o renascer da cultura e da literatura galega tem como marco inicial a publicação de Rosália de Castro, em 1863, de seus Cantares Galegos. Além dela, despontam Eduardo Pondal e Manuel Curros Enriquez, representando o período. O período Intersecular, do fim do século XIX ao início do século XX, o gênero lírico acaba por entrar em decadência.

A literatura pré-guerra é representada na antologia pela obra de Xoán Vicente Viqueira Cortón, Manuel Antonio, incluindo-se também García Lorca. O livro conta com um apêndice, contendo notas sobre os autores, a grafia na poesia galega, entre ouros pontos interessantes para se conhecer mais a respeito da lingua. 

Pode ser uma leitura que não seja popular, mas possui grande importância àqueles que amam poesia, línguas latinas e afins...


sábado, novembro 10, 2018

Sinfonia para vagabundos, de Raimundo Carrero

Uma publicação compartilhada por Maria Valéria - TorporNiilista (@valzita1985) em


Estreando na obra do salgueirense Raimundo Carrero, Sinfonia para vagabundos é uma espécie de ode às noites recifenses, a aura de boemia que a cidade carrega, com suas pontes mal-iluminadas, seus cheiros característicos, e seus transeuntes, que parecem imersos num mar de desolação no cotidiano.

Com uma escrita que possui ares de Thriller e noir, Sinfonia é um livro cru, visceral, poético e denso. Incomoda, tanto na forma de escrever quanto nas reflexões que nos deixa. Carrero dá voz aos mudos imperceptíveis que a sociedade ignora. Vagabundos, poetas, mulheres da noite, bêbados, mendigos que dormem sob marquises de velhos prédios, como Gullar descreveria "pessoas que passam sem falar e estão cheias de vozes e ruínas". Ruínas sociais, mescladas às ruínas da cidade.



Mentes atormentadas, párias da noite que atravessam as madrugadas em busca de qualquer coisa que possa confirmar que ainda estão vivas. Sinfonia para vagabundos mostra um retrato dos zumbis de modernas metrópoles, sonâmbulos que se locomovem como fazendo parte de uma grande máquina que se move pela mão de uns poucos, imersos na ganância, alimentando e sendo descartados quando não mais necessários. 

O livro possui um tom romanesco, bucólico, fantástico. Entremeia-se na crueza e vivência 'fantásmica' dos personagens. A cidade e sua miséria por si mesmas se constituem personagens essenciais no livro. São elas que regem a direção dos protagonistas Natalício e Virgínia, e Deusdete.

A sinfonia extraída do sax de Natalício é o conjunto de vozes desafinadas que compõem o universo. O romance é brutal, mágico, entorpecente. Nos atinge como um soco no estômago, enraizando uma sensação de revolta e indignação por vivermos numa realidade que beira o absurdo... Viver numa degradação e decadência sem se aperceber disso...



sexta-feira, novembro 09, 2018

Um, dois e já - uma metáfora representativa de uma fuga em meio à ditadura uruguaia

Um, dois e já é daquelas leituras que possuem uma narrativa tão poderosa que fisgam o leitor em poucas linhas. Primeira novela da uruguaia Inés Bortagaray publicada no Brasil pela saudosa Cosac Naify, a obra possui pouco menos de cem páginas, mas que são suficientes para nos tragar ao interior de nós mesmos.



Uma verdadeira viagem pela perspectiva de uma jovem narradora, que nos leva pela estrada junto com sua família, admirando paisagens, pessoas, com sutileza, encanto e nostalgia... Um convite para destrancar um baú de memórias de infância... Com uma narrativa aparentemente simples e sem muita complexidade, o leitor vai percebendo que há algo sutilmente oculto no decorrer das páginas...

Ambientado nos anos 1980, a viagem se desvela num panorama da ditadura uruguaia. Usando de metáforas, a autora apresenta personagens que estão se deslocando de seu lugar de pertencimento rumo ao desconhecido, em que as disputas para ver quem irá à janela, as notícias no rádio ou as brincadeiras para passar o tempo dentro do carro são apenas o pano de fundo para uma possível fuga devido a orientação política da família, que bate de frente com o novo 'regime' implantado no país.

É interessante imaginar que durante esse período, muitas famílias fizeram percursos parecidos, que diálogos semelhantes e paradas para xixi tenham sido feitas, numa verdadeira teia de memórias reais que podem ser comparadas à ficção de Bortagaray - uma obra que reflete em muito a realidade não-escrita de personagens que saem do campo ficcional para inserir-se na realidade, retratados com maestria e delicadeza pelo olhar de uma menina que não passa dos doze anos.

Em suma, Um, dois e já possui uma escrita fluída, carrega uma visão político-histórica de maneira subjetiva e nos encanta pela inocência da protagonista, que apesar de não compreender o real mundo a sua volta, nos apresenta a ele mesmo assim, através de seus sonhos, observações e lembranças distantes...



terça-feira, novembro 06, 2018

Os belos contos marcantes de Antonio Viana, em Jeito de matar lagartas

Falar que a escrita de Antonio Carlos Viana é maravilhosa ainda não faz jus ao seu talento como escritor. Os contos que compõem Jeito de Matar Lagartas nos desvelam cotidianos tidos como banais à primeira vista, mas que se mostram bem mais profundos à medida em que avançamos na leitura por tocar em assuntos como envelhecimento, solidão, sexo ou a falta dele, entremeados e inseridos em personagens marcantes e marcados pela dureza da vida.

O distanciamento que os narradores mantém ao contar cada história é proposital, e mesmo assim o leitor sente o quão mergulhados ali eles estão. Os textos trazem secura, avivam a crueldade dos personagens e ao mesmo tempo, passam certo ar de silenciosa discrição.

Os personagens não possuem tantas falas. Mas nos revelam demais com seus gestos, suas dores, vivências e nós na garganta. E nos cativam por essas pequenas particularidades. Em A muralha da China, a morte ronda o conto pela perspectiva de duas crianças, que precisam agir com naturalidade para que a vizinha não descubra por meio delas que o marido e o filho que esta esperava voltar de uma viagem, virão dentro de caixões, porque sofreram um acidente na estrada. 
Dona Katucha adora sexo, mas a idade 'chega para todos' e os sinais da velhice lhe atingem, apesar dela manter seu vestuário de quando ainda tinha as carnes mais duras e tenras, e não esse atual monte de pele flácida e caída que ela tem como corpo. Em Cara de boneca, o autor faz uma crítica interessante sobre a sexualidade florescendo na adolescência dos meninos de bairro, que têm suas primeiras experiências com travestis e afins, mas que todos preferem 'fazer vista grossa', sabendo do que acontece mas tentando manter as aparências que as convenções sociais nos impõem.

Madame Viola achou que enterraria o marido depois de uma notícia vista na TV. Planeja um roteiro com base numa suposta notícia que a qualquer momento chegaria em sua porta. Mas a morte - e a vida - pregam peças...

As margens férteis do Nilo é daquelas histórias de paixões pela professora na adolescência. Quem nunca vivenciou ou soube de alguém que passou por isso? Antonio Viana escreve ficção que beira o real. Cria personagens que podem viver na casa ao lado da nossa, que frequentam o mesmo bar que nós mesmos ou situações que vivenciamos, presenciamos ou ouvimos falar.

A riqueza de seu texto vai além. Nos choca enquanto nos insere. Nos retrata enquanto lemos. Nos revolve lembranças, nos envolve em estranha melancolia, nos faz matar lagartas. ou sapos. insetos. Nos revela o mais banal e mais visceral de nós mesmos.

quinta-feira, novembro 01, 2018

[HQ] Black Hole, de Charles Burns

Black Hole entremeia narrativas pela perspectiva de um grupo de jovens na época do colegial, em que são acometidos por uma doença que se dissemina através do contato sexual, fazendo com que os infectados adquiram anomalias perceptíveis no corpo, causando desconforto por parte dos demais indivíduos. Muitos desses jovens 'bichados' acabam se refugiando na floresta nos arredores da cidade, se escondendo de olhares de repulsa e preconceituosos de seus habitantes. 


Escrita por Charles Burns e publicada num volume único pela Darkside Books, Black Hole ganhou vários prêmios desde o seu lançamento e trata-se de uma metáfora sobre o surgimento dos primeiros casos de AIDS na década de 1980. Improvável não fazer alusão ao tema no decorrer da história. 

Com desenhos em preto e branco, a HQ passa uma sensação de morbidez e sufocamento, e nos revela muito da juventude daquela geração, com seus problemas decorrentes típicos da idade em conjunto com o contexto da época. Pessimismo, decadência, ambiente claustrofóbico entre outras características fazem dessa graphic novel uma excelente obra-prima. 

O desfecho tem um quê de poético, triste e lírico. Nos parece indissoluto, nos fazendo mergulhar - assim como a personagem do último capítulo - numa imensidão silenciosa e vasta, em paralelo a insignificância de nossas existências. 
Retrato poético de uma juventude vazia de perspectivas, extraviada de sonhos. 
Perdida.