Já não tem posição na cama: as costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, se obra sem querer. A filha tapa o nariz com dois dedos e foge para o quintal:- ai, que fedor.. Meu Deus, que nojo!Com a desculpa que não podem vê-lo sofrer, mulher e filha mal entram no quarto.
Dona Candinha padece os horrores da rejeição por parte de sua própria filha. A velhice é a condição que a faz perder o afeto. Um namoradinho que surge é outra razão para ser abandonada numa clínica de repouso. Deixada sozinha num lugar que pouco ou nada se importa com os sentimentos dos pacientes, o conto é um reflexo de como tratamos os velhos na nossa sociedade.
Sem se aquecer ao sol, sobrevivendo aos golinhos de chá frio e bolacha Maria. Tão fraca nem podia ler, as letras embaralhadas mesmo de óculo.
_ Olhe essa mulher, doutor - era a filha, vestido preto de cetim, lábio de púrpura, pulseira prateada. - Domingo de sol, uma pessoa deitada? O dia inteiro chorando e se queixando. Aqui não falta nada, que mais ela quer?
- Vá-se embora - respondeu docemente a velha. - Desapareça da minha vista. Você mais o dente de ouro.
De dia o rádio ligado a todo o volume. À noite, a gritaria furiosa das lunáticas. Sentadinha na cama, distrai-se a velha a espiar uma nesga no céu.
Fifi, já velhinha, tem onze anos. Não consegue subir as escadas. A moça hoje, sua dona desde menina, há muito não brinca com ela. A dona da casa implica com o seu cheiro de velhice e pêlos com pulgas. A saúde piora, chamam o veterinário, mas ao menor sinal do namorado a chamar no portão, a preocupação com a cachorrinha se esvai. Prioridades...
Gemendo, se a dor passa um pouco, espicha as pernas. Olhinho bem aberto (a imagem da moça ali para sempre), entra latindo no céu.
Vozes do retrato mostra o [des]apego do indivíduo em detrimento do efêmero. É sobre a rudeza dos cotidianos que se mostram implacáveis, e Dalton Trevisan não se poupa de escancará-los em seus textos. Retratos que revelam mais do que o homem quer revelar. Retratos que ecoam, numa espécie de soluço mudo, secos, provocando um baque no peito de quem os contempla...