Vozes do retrato - Dalton Trevisan

 Numa coletânea de textos revisados pelo próprio autor, Vozes do retrato carrega quinze textos curtos de autoria de Dalton Trevisan, que desnudam a alma dos personagens imersos em realidades cruas e secas, que se mostram mais palpáveis do que imaginaríamos.



João está morrendo de câncer. Já se tornou um incômodo para a mulher e filha, cheira mal e se encontra numa cama. Pela perspectiva de outros personagens, é o algoz da narrativa. Aquele que não dá descanso aos seus. Cruel? Real. Eis o poder de Trevisan com as palavras. 

Já não tem posição na cama: as costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, se obra sem querer. A filha tapa o nariz com dois dedos e foge para o quintal:
- ai, que fedor.. Meu Deus, que nojo!
Com a desculpa que não podem vê-lo sofrer, mulher e filha mal entram no quarto. 


Dona Candinha padece os horrores da rejeição por parte de sua própria filha. A velhice é a condição que a faz perder o afeto. Um namoradinho que surge é outra razão para ser abandonada numa clínica de repouso. Deixada sozinha num lugar que pouco ou nada se importa com os sentimentos dos pacientes, o conto é um reflexo de como tratamos os velhos na nossa sociedade. 

Sem se aquecer ao sol, sobrevivendo aos golinhos de chá frio e bolacha Maria. Tão fraca nem podia ler, as letras embaralhadas mesmo de óculo. 

_ Olhe essa mulher, doutor - era a filha, vestido preto de cetim, lábio de púrpura, pulseira prateada. - Domingo de sol, uma pessoa deitada? O dia inteiro chorando e se queixando. Aqui não falta nada, que mais ela quer?

- Vá-se embora - respondeu docemente a velha. - Desapareça da minha vista. Você mais o dente de ouro. 

De dia o rádio ligado a todo o volume. À noite, a gritaria furiosa das lunáticas. Sentadinha na cama, distrai-se a velha a espiar uma nesga no céu. 


Fifi, já velhinha, tem onze anos. Não consegue subir as escadas. A moça hoje, sua dona desde menina, há muito não brinca com ela. A dona da casa implica com o seu cheiro de velhice e pêlos com pulgas. A saúde piora, chamam o veterinário, mas ao menor sinal do namorado a chamar no portão, a preocupação com a cachorrinha se esvai. Prioridades... 

Gemendo, se a dor passa um pouco, espicha as pernas. Olhinho bem aberto (a imagem da moça ali para sempre), entra latindo no céu. 


Vozes do retrato mostra o [des]apego do indivíduo em detrimento do efêmero. É sobre a rudeza dos cotidianos que se mostram implacáveis, e Dalton Trevisan não se poupa de escancará-los em seus textos. Retratos que revelam mais do que o homem quer revelar. Retratos que ecoam, numa espécie de soluço mudo, secos, provocando um baque no peito de quem os contempla... 




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5 comentários:

  1. Oi Val. Gostei muito dos pontos que passou a respeito dessa obra. Esse livro tem um jeitão que meu marido e eu gostaríamos de ler, e comentar depois! Vou indicar a ele para uma leitura de casal... hehehehe
    Beijocas

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  2. Eu quero. Um dificuldade encontrar algo do autor aqui no sebo, nunca acho. O bom de livros com textos curtos é que dá para ler rápido e nesse caso, acaba por gerar um impacto.

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    1. Na Amazon tem várias edições dele. Estante virtual tbm e uma opção. Comprei esse por lá. 🥰

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  3. Eu acho que nunca li nada do autor, apesar do nome me ser bastante familiar. Eu já fiquei agoniada só de ler alguns dos trechos que você colocou aqui, imagina lendo a obra inteira? =s É realmente um retrato nu e cru da nossa realidade, que, infelizmente, é mais comum do que imaginamos.
    Bjks!

    Mundinho da Hanna
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  4. Oi, tudo bem? Acredito que os seres humanos, de forma geral, enxergam a vida de acordo com suas próprias experiências. Nem todas as pessoas se comportariam da mesma forma frente a uma situação do cotidiano. Isso é o que enriquece a vida. Um abraço, Érika =^.^=

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