Vozes do retrato - Dalton Trevisan
Já não tem posição na cama: as costas uma ferida só. Paralisado da cintura para baixo, se obra sem querer. A filha tapa o nariz com dois dedos e foge para o quintal:- ai, que fedor.. Meu Deus, que nojo!Com a desculpa que não podem vê-lo sofrer, mulher e filha mal entram no quarto.
Dona Candinha padece os horrores da rejeição por parte de sua própria filha. A velhice é a condição que a faz perder o afeto. Um namoradinho que surge é outra razão para ser abandonada numa clínica de repouso. Deixada sozinha num lugar que pouco ou nada se importa com os sentimentos dos pacientes, o conto é um reflexo de como tratamos os velhos na nossa sociedade.
Sem se aquecer ao sol, sobrevivendo aos golinhos de chá frio e bolacha Maria. Tão fraca nem podia ler, as letras embaralhadas mesmo de óculo.
_ Olhe essa mulher, doutor - era a filha, vestido preto de cetim, lábio de púrpura, pulseira prateada. - Domingo de sol, uma pessoa deitada? O dia inteiro chorando e se queixando. Aqui não falta nada, que mais ela quer?
- Vá-se embora - respondeu docemente a velha. - Desapareça da minha vista. Você mais o dente de ouro.
De dia o rádio ligado a todo o volume. À noite, a gritaria furiosa das lunáticas. Sentadinha na cama, distrai-se a velha a espiar uma nesga no céu.
Fifi, já velhinha, tem onze anos. Não consegue subir as escadas. A moça hoje, sua dona desde menina, há muito não brinca com ela. A dona da casa implica com o seu cheiro de velhice e pêlos com pulgas. A saúde piora, chamam o veterinário, mas ao menor sinal do namorado a chamar no portão, a preocupação com a cachorrinha se esvai. Prioridades...
Gemendo, se a dor passa um pouco, espicha as pernas. Olhinho bem aberto (a imagem da moça ali para sempre), entra latindo no céu.
Vozes do retrato mostra o [des]apego do indivíduo em detrimento do efêmero. É sobre a rudeza dos cotidianos que se mostram implacáveis, e Dalton Trevisan não se poupa de escancará-los em seus textos. Retratos que revelam mais do que o homem quer revelar. Retratos que ecoam, numa espécie de soluço mudo, secos, provocando um baque no peito de quem os contempla...
Oi Val. Gostei muito dos pontos que passou a respeito dessa obra. Esse livro tem um jeitão que meu marido e eu gostaríamos de ler, e comentar depois! Vou indicar a ele para uma leitura de casal... hehehehe
ResponderExcluirBeijocas
Eu quero. Um dificuldade encontrar algo do autor aqui no sebo, nunca acho. O bom de livros com textos curtos é que dá para ler rápido e nesse caso, acaba por gerar um impacto.
ResponderExcluirNa Amazon tem várias edições dele. Estante virtual tbm e uma opção. Comprei esse por lá. 🥰
ExcluirEu acho que nunca li nada do autor, apesar do nome me ser bastante familiar. Eu já fiquei agoniada só de ler alguns dos trechos que você colocou aqui, imagina lendo a obra inteira? =s É realmente um retrato nu e cru da nossa realidade, que, infelizmente, é mais comum do que imaginamos.
ResponderExcluirBjks!
Mundinho da Hanna
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Oi, tudo bem? Acredito que os seres humanos, de forma geral, enxergam a vida de acordo com suas próprias experiências. Nem todas as pessoas se comportariam da mesma forma frente a uma situação do cotidiano. Isso é o que enriquece a vida. Um abraço, Érika =^.^=
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