Resenha: Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva...

"Nunca tinha imaginado que essa operação pudesse ser tão violenta. Seis horas numa mesa cirúrgica com o pescoço aberto. Depois tem o acordar, ainda sob efeito da anestesia: a cabeça em ordem, o corpo em câmera lenta. Acaba a anestesia e vem a dor. Para operar meu pescoço, tiveram que afastar com um gancho todos os músculos da coluna. Três dias de dores insuportáveis, amarrado. E, o que era pior, quinze dias sem sentar. Senti-me voltando à UTI. "Eu não aguento mais, é muito sofrimento prum carinha de vinte anos que nunca fez mal a ninguém." Ó deus, como você foi injusto, cara. Lamentável. Tanta gente babaca por aí, e justo eu você escolhe... Tanto assassino, tanto ladrão, tanta gente que não usa o corpo pra nada, que não sabe tocar um Villa Lobos, não sabe catar no gol, não se interessa por agricultura, não sabe fazer amor. É, você me preparou uma surpresa desagradável. Tudo aquilo que eu tinha sonhado, meus planos pro futuro, desaguou numa simples queda mal calculada."


Ler Feliz Ano Velho foi uma grata surpresa. Estava eu no sebo onde costumo comprar meus livros e em meio a pilha de obras 'do momento', encontro escondido um exemplar da Ed. Brasiliense, com as folhas gastas pelo tempo, orelhas na capa e um título que me soou levemente familiar... Lendo um dos posts mais antigos do Dose Literária, feito pela minha saudosa Eni [in memorian] me deparei com um livro chamado Quando o futuro não pede licença, do autor Carlos Moreno. Fiquei bem curiosa com o título, com a trama, ainda mais por se tratar de um caso real... e em meio ao seu texto, Eni tinha falado que o autor ganhou o livro Feliz Ano Velho de um amigo, Marcelo Rubens Paiva, que passava pela mesma situação de ter perdido o movimento do corpo numa fatalidade. Claro que anotei na listinha de livros a procurar em sebos... Ainda não encontrei o livro de Carlos Moreno, mas encontrei o de Rubens Paiva...

Li em apenas dois dias, e logo no prefácio, senti que Marcelo Rubens Paiva me 'pegou de jeito'. Me senti acariciada' com uma leve bofetada, como se ele me dissesse: 'ei, esse livro eu escrevi pra que você soubesse da minha história, vamos papear'. Um dos trechos que mais me encantaram no prefácio diz o seguinte: 
"No fundo eu acho que a transa da literatura está ligada à transa da verdade (assim como a revolução, o amor e um montão de coisas). [...] A tua história está transada de um jeito putamente terno, bem-humorado, erótico e sedutor, o que, aliás, é a sua maneira de ser."  

Esse trecho foi escrito por um amigo de nome Luis Travassos, em 1981. A resposta de Marcelo foi a seguinte:
"Nós, com quem o destino não foi muito generoso, temos uma cumplicidade com a vida, e procuramos juntos nos defender dela. [...] Você morreu, Zé, e eu adorava você. Esse livro é dedicado a você, e, quando eu for pro céu, vou levar o que você não leu, e umas folhas em branco pra sua história. Até mais, garotão." Marcelo. 
E eis que Marcelo me contou sua história...

Aos vinte anos, um rapaz como tantos outros, que tocava violão, jogava bola e era estudante de engenharia agrônoma pula numa piscina rasa e vê sua vida mudar completamente. Em 14 de dezembro do ano de 1979, ele subiu numa pedra e gritou: 

"- Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin." 

Eis que começa o seu pesadelo real. Aos vinte anos, Marcelo se vê preso a uma cadeira de rodas, lutando com todas as suas forças para ganhar os movimentos do pescoço pra baixo. ele narra os acontecimentos de sua infância, quando seu pai foi levado pelos militares na época da Ditadura, e nunca mais o viu. Confesso que grifei boa parte do livro, nas passagens que ele conta sobre seus sonhos, suas dificuldades de adaptação, o início de tudo, em que ele se recusa a entender que vai ficar preso a uma cadeira de rodas para sempre, que as chances de voltar a andar são mínimas, bem como seus medos, receios, amores, família... 

A linguagem de Marcelo é bem crua, contando também de suas relações sexuais, as lembranças de um passado não tão distante que se perdeu no caminho pós-queda... É um relato intenso, que emociona, cativa o leitor, faz refletir e por momentos eu me coloquei no lugar dele. Se fosse comigo? Se fosse com um parente meu, alguém próximo a mim? Você descobre as dificuldades de um cadeirante numa sociedade que tem obsessão por escadas, onde o acesso a muitos lugares é comprometido. Me fez lembrar de uma situação que vivi alguns dias atrás, quando vinha de Recife pra minha cidade. Estava eu no centro da 'Veneza brasileira', quando o ônibus pára e junto comigo, subiu um cadeirante. O elevador do ônibus quebrou após subirem o rapaz, e passamos uns dez minutos esperando o motorista conseguir guardar o elevador pra continuarmos a viagem. E todas as pessoas no ônibus olhavam para o cadeirante, como se a culpa pelo atraso do ônibus fosse por causa dele 'se o ônibus não tivesse parado para o paraplégico, estaríamos seguindo viagem' e não por uma falta de manutenção do transporte público. Fiquei pensando no que o rapaz pensava na hora, com aqueles olhares acusadores e/ou questionadores voltados pra ele. Fiquei triste, senti vontade de chegar perto dele e perguntar se ele precisava de alguma coisa. Mas segurei meu ímpeto porque a maioria não gosta de ser vista com 'piedade'. E volta e meia agimos assim com os deficientes. Ao ler o livro, esse rapaz me veio a mente, e penso que o autor, Marcelo, deve ter passado por situações parecidas, até hoje inclusive... 

Não é uma leitura leve, divertida, mas passa longe do depressivo. Mesmo nas piores 'passagens' do livro, Marcelo usa de uma ironia mordaz para tratar de seu problema, algo como 'se é o jeito, vamos rir pra não chorar'. Sua crueza me fascinou, me despertou um misto de sensações e confusão... E senti como se ele falasse pra mim, num papo casual, como ocorreu a tragédia de sua vida, e de como ele a superou com o tempo e ajuda 'dos seus'...  Leitura mais que recomendada. Uma das melhores do ano, quiçá da vida... 


"Hoje em dia, me pergunto se preferiria estar morto. Não sei, nem quero saber. Só sei que, nas noites em que tenho insônia, lembro de um garoto normal que subiu numa pedra e gritou:
- Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin.
Estava debaixo d'água. Não mexia os braços nem as pernas. Via somente a água barrenta e ouvia: BIIIIIIIN." 

Feliz Ano Velho - os R$5,00 reais mais bem pagos da minha vida...

8 comentários:

  1. blecaute dele tb eh mto bom.... mas n eh autobiografico (n lembro se tem hifen ou n)

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    1. vou procurar ler tb, assim que encontrar esse título eu compro ^^

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  2. cara eu n sou fã de livros brasileiros, n sei pq mas eu leio pq sempre encontro coisas boas.n é um livro que me chamaria a tenção, mas gostei da resenha e com certeza leria pq achei interessante,

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    1. não sei se tu ia curtir, mas que é bom, é rsrs =]
      bjs

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  3. Amei a resenha =D
    http://fogogregoo.blogspot.com.br/

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  4. Oi, Valéria!

    Confesso que não me interessei pela leitura do livro, mesmo você dizendo que é uma leitura divertida (eu adoro). Mas fico feliz que tenha gostado.

    Abraços!
    encantosparalelos.blogspot.com.br

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  5. Eu sou suspeita pra falar, sou perdidamente louca por esse livro.
    É uma história forte e tão marcante toca lá no fundo da alma e ainda temos uma conterrânea no livro e o Marcelo fala nela de maneira tão doce *__*

    Bjooo ♥

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