Linha M

"Vou me lembrar de tudo e vou escrever tudo isso. Uma ária a um casaco. Um réquiem a uma cafeteria. Era no que eu estava pensando no meu sonho, olhando para minhas mãos."




Linha M é o segundo livro de Patti Smith publicado pela Editora Companhia das Letras, e eu tive a feliz oportunidade de lê-lo e trazer minhas impressões sobre essa leitura pungente e permeada de melancolia, sobre a vida de uma das artistas mais importantes da história do Rock Mundial... 

No livro autobiográfico Só Garotos, Patti conta a história de sua vida ao lado de Robert Mapplethorpe, mas em Linha M, eu diria que ela focou na figura de Patricia, em seus gostos por café, beats, viagens à túmulos e casas de artistas que ela admirou e em sua relação com o marido, Fred Smith, morto em 1994, em decorrência de um ataque cardíaco. 

"já sonhei em ter um café. Acho que essa vontade surgiu com as leituras sobre a importância dos cafés na vida dos beats, dos surrealistas e dos poetas simbolistas franceses. Não existiam cafés onde eu cresci, as havia nos meus livros, e eles floresceram nos meus sonhos. Em 1965 eu vim de South Jersey a Nova York só para perambular por aqui, e nada me parecia mais romântico que sentar e escrever poesia num café do Greenwich Village."

Patti visitou o México, e em seus bolsos colocou pedrinhas de uma prisão descrita num romance de Jean Genet, pois ela queria que o autor tivesse algo do lugar para onde ele gostaria de ter ido e não pôde. Descreveu sua saudosa relação com o pai, ateu e casado com uma testemunha de Jeová [sua mãe]... Foi a Berlin para uma palestra, e visitou lugares de importância poética para ela... Evoca os fantasmas da sabedoria beat a fim de lhe ajudar em textos que teimam em permanecer na mente, e não ousam repousar em seus papeis... Cita William Burroughs, amigo beat de longa data, que precisa ser evocado de outra maneira, pois já não pertence ao plano físico...

"Frases de detetive me trazendo à mente o tom grave de canto de boca de William Burroughs. Naquela travessia, fico pensando como William decifraria a linguagem de minha disposição atual. Houve um tempo em que eu poderia simplesmente pegar o telefone e perguntar a ele, mas agora preciso evocá-lo de outras formas."

Ela escreve sobre as lembranças que tem de sua mãe, sua infância comendo donuts com café nas manhãs geladas de sábado, sobre sua terra natal, Chicago. A artista une suas memórias ao presente de maneira que beira o místico, nostálgico, bucólico... Sobre sua mãe, "Sempre que eu fritava dois ovos, pensava nela."

"Uma época de pequenos prazeres. Quando uma pera surgia no galho de uma árvore e caía aos meus pés e me alimentava. Agora não tenho árvores, nem berço nem varal. Há rascunhos de manuscritos espalhados pelo chão, caídos da beira da cama durante a noite. Há telas inconclusas afixadas na parede e um aroma de eucalipto que não consegue encobrir o cheiro de terebintina e óleo de linhaça. Há antigas gotas de cádmio vermelho manchando a pia do banheiro - atingindo a borda do rodapé - e borrões na parede onde o pincel escapou. Basta entrar no espaço de vivência para sentir a centralidade do trabalho em uma vida. Copos de papel de café meio vazios. Sanduíches de balcão meio comidos. Um prato de sopa encrostado. Eis aqui alegria e abandono. Um pouco de mescal. Uma pequena masturbação, mas na maior parte só trabalho. - É assim que eu vivo - fico pensando."

Ela visitou o México novamente, andou pelos corredores da casa onde Diego Rivera e Frida Kahlo moravam, apostou na compra de um bangalô carcomido a beira-mar, sem sequer ter visto seu interior, e dali fez seu santuário... As lembranças daquele dia das bruxas em que Fred foi embora e um mês depois, seu irmão Todd deixando a vida também... Foi ao Japão colocar flores nos túmulos de autores suicidas. Retorna a Europa para visitar a última morada final de mais uma suicida, a poeta Sylvia Plath... Conjectura sobre a vida, morte e o além de tudo isso...

A passagem implacável do tempo, transmutando tudo, levando os vivos, arrancando a pureza da infância, deixando rastros de um passado há muito vivido... São memórias que nos são compartilhadas de maneira íntima, profunda e casual. Sem pretensão a 'fazer arte'. Mas Patti faz... Em pouco mais de 200 páginas e carregada de melancolia, ela compartilha de suas tristezas, perdas e conquistas, seus pequenos paraísos-perdidos... "Talvez não seja possível criar matéria a partir de devaneios nem recuperar uma espora poeirenta, mas podemos juntar o sonho e trazê-lo de volta como um todo."


11 comentários:

  1. Oi, até pouco tempo eu não conhecia ela e toda sua historia e nem sabia que ela tinha livros publicados, até que vi videos da Tatiana Feltrin e descobri sobre a Patti e seus livros e fiquei curiosa para ler Só Garotos. Agora atraves do seu blog conheci esse outro livro biográfico dela e também já quero ler, então, vou colocá-lo na lista de desejados. Amei a resenha e espero logo ler e sentir o mesmo que você quando leu.
    bjus

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  2. Nossa! Você escreveu de maneira simples e conseguiu evocar um desejo muito grande de ler esse livro. Parabéns!! Gosto muito das músicas da Patti Smith, mas confesso que nunca li nenhum livro escrito por ela. Percebi que já passou da hora de fazê-lo... Obrigada pela dica e, mais uma vez, parabéns pela postagem! =)

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  3. Oi Val, confesso que o pouco conhecimento que tenho sobre a autora foi adquirido graças as tuas resenhas, como sempre digo, gosto muito da perspectiva que tu joga sobre as obras e isso faz com que eu tenha vontade de lê-las. Esse é mais um que vai pra minha lista de aquisições com certeza.

    Beijos

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  4. Olá Maria, não conhecia essa obra (isso é uma das coisas que mais gosto no seu blog, sempre indicando livros incríveis, os quais desconheço!). Abraços

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  5. Oi, Maria. Eu nunca ouvi falar desse livro e confesso que somente vendo a capa, não me interessei nenhum pouco, mas como o ditado diz "nunca julgue um livro pela capa", e acabando de ler sua resenha, percebo que o livro parece trazer muito mais do que meras lembranças de uma pessoa. Eu adorei a premissa e vou procurar ler. Beijo
    O Reino Encantado de uma Leitora

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  6. Oie
    não conhecia o livro e o título é bem diferente né? hahaha bem interessante parece ser a obra e gostei da resenha, quem sabe sou uma chance mais pra frente

    Beijos
    http://realityofbooks.blogspot.com.br/

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  7. Olá! O nome da autora eu reconheci claro, mas o livro ainda não me era familiar. A premissa parece ser boa, contudo, não é meu tipo de leitura favorito. Adorei a resenha anjo!

    Beijão da Lari!
    Brilliant Diamond | Fan Page

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  8. Eu não conhecia essa autora, mas mesmo não sendo o meu tipo de leitura eu me interessei pelo livro. Acho que vai ser uma nova experiencia literária pra mim.

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  9. Oi Maria, tudo bem?
    Não me interessei muito pelo livro. Não conhecia a Artista e não me senti cativado a ler o livro para saber mais.

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  10. Oi, flor.
    Dessa vez, não sei, o livro não me interessou. Acho que é realmente mais apropriado para quem já conhecia a artista em questão. Mas gostei da sua resenha. Faz notar que há sempre pessoas interessantes no mundo, que marcaram de alguma forma a história.

    Beijos!
    www.myqueenside.com.br

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  11. Oiiii
    Não conhecia esse livro. O livro parece ser realmente muito bom para quem curte esse tipo de livro. Acho esse tipo de leitura bem adulta. Não faz muito meu gênero,ando numa vibe mais infantojuvenil.
    Bjus

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