Caio e alguns de seus Fragmentos...
Ontem, 25 de fevereiro, foi mais um aniversário de morte de Caio Fernando Abreu. Há 19 anos esse grande e incrível escritor da nossa literatura contemporânea falecia em decorrência da AIDS. Caio f. era gaúcho, e deixou uma vasta obra de contos e devaneios que parecem se encaixar com maestria em vários momentos de nossas vidas [ao menos da minha]... E hoje eu trago para vocês, numa singela ode, as impressões que tive ao ter contato com seu livro Fragmentos, pela primeira vez que o li...
Fragmentos foi publicado pela L&PM Editores, e traz 8 histórias e um conto. Na verdade, eu considero todos como contos, e em cada um deles eu pude sentir uma identificação... São frases profundas, cheias de melancolia e com um pequeno traço de [des]esperança em cada linha. A maioria fala sobre amores, encontros e [des]encontros, estórias que poderiam acontecer comigo, com você, ou que podem ter acontecido realmente na vida de Caio... Quem sabe...
Eu sou do tipo de pessoa que prefere acreditar que muito do que Caio escrevia, seja em cartas ou contos, trazia algo dele ali... é que, pode parecer meio louco de minha parte dizer isso, mas acho meio difícil alguém escrever como ele escrevia sem ter vivenciado nada, absolutamente nada daquilo... por vezes me pego conjecturando sobre isso, e creio que ele deve ter tido vários amores doloridos, e que forma bonita de colocar no papel essas dores...
Os contos reunidos em Fragmentos são: Porta-retrato, Os sapatinhos vermelhos, Sargento García, Uma história de borboletas, Além do ponto, Paris não é uma festa, Para uma avenca partindo, Os sobreviventes, Pela passagem de uma grande dor, Aqueles dois, O inimigo secreto. Eu gostei de todos. Todos. Confesso que meu livro está praticamente todo grifado, pois há trechos que me marcaram profundamente, e me identifiquei com eles. Certamente se eu pudesse escolher alguém morto pra ter uma tarde de bate-papo seria Caio Abreu...
Porta-retrato começa assim: "Tinha secado: esse era talvez o ponto." É algo como uma conversa íntima consigo mesmo. Ele faz um mergulho íntimo e devaneia sozinho, mas traz o leitor pra perto dele, num convite a desvendá-lo... Porta-retrato foi escrito em 1978. Depois, vem Os sapatinhos vermelhos, que é um de meus textos preferidos.
"Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. Ou quando começa: certos sustos na boca do estômago. Como carrinho de montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora."
É sobre uma mulher de mais ou menos quarenta anos que sofreu alguma desilusão amorosa. Ela bebe, fuma, sozinha num feriado de sexta-feira santa, acompanhada apenas dos demônios em seus pensamentos, se questionando sobre a essa altura da vida não ter família, casa própria - em suma - uma vida constituída segundo os moldes 'convencionais'. "Ponto seco, ponto morto." É nesse ponto que sua vida se enquadra. Então em meio a fumaça do cigarro, ela lembra dos sapatinhos vermelhos que ganhou do amante. Desembrulha o papel que envolvia os sapatos, quebrando o silêncio solitário em que se encontrava em seu apartamento. São sapatos vermelhos, e colocando uma trilha ao fundo, ela resolve tomar banho e se arrumar, calça os sapatos e sai na noite, pois o que ela quer é amar... Quando ela consegue o que queria, se despede de quem encontrou na noite fria, dizendo apenas: "- Vai embora. Acabou."
Quando a nova semana começa, ela já está de volta ao emprego habitual, com os pés levemente doloridos, se justifica dizendo que foram sapatos novos que apertaram os pés... Mas o dolorido de dentro, aquele que o sexo no feriado da sexta-feira santa não aplacou, lateja mais que seus pés. Lateja o seu próprio ser...
Sargento García conta a história de um rapaz que vai pro exército e é logo destratado por um sargento [aquele que dá nome ao conto]. Mas, depois de uma simples carona, as coisas parecem se mostrar favoráveis a ambos os personagens... Não há como falar muito sobre este conto sem dar detalhes da trama, e realmente é mais prazeroso descobrir lendo o mesmo do que saber por meio da minha resenha sobre do que se trata o conto...
Para uma avenca partindo é sobre uma despedida num ponto de ônibus. as palavras são quase cuspidas, sem muitos pontos ou vírgulas nos locais 'corretos', numa espécie de fluxo de consciência, em que o personagem se atropela com as palavras, mas solta todos os sentimentos engavetados em seu íntimo para a pessoa a quem está dizendo adeus.
"eu tenho uma porção de coisas para te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não se sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando o meu raciocínio? falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs,"
Pela passagem de uma grande dor é uma garota que liga para Lui, pois se sente sozinha, e precisava ouvir a voz dele novamente. Ela tenta engatar uma conversa mas a todo momento o questiona se ela o está atrapalhando ou incomodando. Ele diz que não, que não havia nada para fazer mesmo e deixa a conversa fluir... Os minutos passam e aquela conversa sem sentido algum é envolta numa trilha sonora ao fundo, de um antigo disco que ele pôs pra tocar em seu apartamento. Ela o chamou para sair, ele não quis. Então ela se despede, não sem um pouco de tristeza...
"Ele fez um movimento em direção a telefone. Chegou a avançar um pouco, como se fosse voltar. Mas não se moveu. Imóvel assim no meio da casa, o som desligado e nenhum outro ruído, era possível ouvir o vento soprando solto pelos telhados."
Aqueles dois conta a história de dois homens [Saul e Raul] que se conhecem num ambiente de trabalho e logo que se tornam amigos acabam dando o que falar na repartição... A meu ver, é uma crítica sutil à visão preconceituosa das pessoas que não aceitam um amor entre pessoas do mesmo gênero. Caio era homossexual e imagino que ele já deve ter passado por algumas situações desse tipo em sua vida...
Bem, não falei de todos os contos, apenas daqueles que mais gostei e foi difícil escolher, pois gostei de todos... Mas recomendo a leitura desse livro por pensar que em algum desses fragmentos o leitor irá se encontrar, ou ao menos lembrar de algo que já lhe ocorreu, e que está ali, naquelas páginas. Como eu disse no início do texto, Caio tinha essa maestria de escrever para todos e para ninguém em específico, ou para ele mesmo... O que é certo é que em algum momento, ao ler sua obra, você vai 'conversar' com Caio e se identificar com ele ou com seus textos...
Gosto dos textos do Caio.
ResponderExcluirFragmentos é um livro fabuloso, acho que tenho que dá outra lida, nem lembrava mais.
Legal o fato de vc lembrar o aniversário dele, espero que continue fazendo com outros autores :D
Cara eu amo Caio Fernando Abreu, acho que é meu segundo escritor favorito e não tem como não se identificar com seus textos.. eu mesma já usei vários para me expressar, pena que atualmente virou modinha postar frases de Clarice e Caio nas redes sociais como legendas de fotos sensuais por algumas meninas fúteis querendo aparecer ¬¬ aí graças a isso acabam tirando sarro de algo tão bonito como foi a obra desses dois e de tantos outros escritores super importantes para a nossa literatura. Adorei o seu texto como sempre Val, eu já li todos esses contos e confesso que ainda me arrepio com alguns. Grande beijo!
ResponderExcluirMutações Faíscantes da Porto
Não sei se feliz ou infelizmente tem sido as dores muito mais que as alegrias que tem movido os poetas, as almas sensíveis ,bjs amada adorei a apresentação da obra.
ResponderExcluirNão li muitos livros nacionais, quase nada, admito. Mas fico feliz de ao menos dizer que este eu conheço, não é a toa, é usado como ensinamento das escolas.
ResponderExcluirMas ainda assim, fragmentos eu não conhecia. Valeu pela dica.
Beijos.